Por Hermes C. Fernandes
“A beleza salvará o mundo.” Fiodor Dostoievski
“Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça...” Tom Jobim e Vinícius de Moraes
“Pela beleza sois salvos, mediante a fé, e isso não vem de vós, é dom de Deus.” Efésios 2:8
Soou estranho pra você, não? O correto não seria “pela graça sois salvos…”? Pois é, pois é, pois é… como diria a Ciquinha do Chaves. Permita-me explicar: A palavra grega traduzida por “graça” no Novo Testamento é charis, equivalente ao vocábulo hebraico chen, encontrado no Antigo Testamento. O conceito por trás desta palavra é riquíssimo, e geralmente tem sido definido como “favor imerecido”. Apesar de correta, esta definição não dá conta de encerrar todo o seu sentido. Do ponto de vista ético, graça é sinônimo de gratuidade pura. Deus resolveu tratar-nos da maneira como não merecemos, sem exigir absolutamente nada em troca. Em resposta à Sua iniciativa, fazemos da gratidão nossa motivação e base de nosso relacionamento com Ele. Toda a ética cristã jorra daí. Qualquer bem que façamos não tem a pretensão de tornar-nos merecedores da salvação, mas tão-somente de demonstrar nossa gratidão por tão grande salvação. Em outras palavras, nossas boas obras não são a causa de nossa salvação, e sim a sua consequência natural. Evito pecar, não pra ser salvo, mas porque sou salvo. A salvação não é fruto dos esforços humanos. Não é conquista que se deva creditar aos homens. Ela é obra inteiramente de Deus. Ele entra com 100%. Isso não é belo? Percebe a poesia por trás desta preciosa doutrina?
Devo confessar que o que mais me atrai no Cristianismo é a sua poesia. Tudo soa tão belo, tão romântico, tão sedutor. Prescindir da beleza é tornar-se num religioso petrificado, feito mármore fria, desprovida de qualquer sinal de vida. Em vez de estética, nossa espiritualidade é estática, contrariando assim a célebre definição de Gotthold Lessing de que "a graça é a beleza em movimento". Não se pode engessá-la, cristalizá-la, reduzi-la a um conceito teológico frio. Infelizmente, a teologia ocidental tornou-se tão racional, que perdemos de vista a beleza por trás de seus enunciados doutrinários. O aspecto ético deve fazer-se acompanhar do fator estético, sob pena de perder seu poder atrativo. O que é bom, também é belo. O profético também é poético.
Logo depois de afirmar que somos salvos pela graça, Paulo prossegue em seu raciocínio alegando que a salvação não poderia ser pelas obras, a fim de que não nos gloriássemos nisso. Se a salvação dependesse de nossas obras, logo teríamos razão para nos vangloriar, e isso retroalimentaria nosso orgulho, pai de todos os pecados. Para que este ciclo fosse interrompido, a salvação teria que ser 0800. Em seguida, Paulo complementa: “Porque somos feitura sua, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus antes preparou para que andássemos nelas” (Efésios 2:10). Neste trecho, a palavra traduzida por “feitura” (que lembra feiúra, rs) é poiēma, que significa poema. Portanto, na mesma passagem em que Paulo diz que fomos salvos pela beleza da graça, ele também afirma que nossa vida é um poema composto por Deus. Cada estrofe deste poema já foi escrito muito antes de nascermos. Nossa existência terrena é apenas a declamação deste poema. Quanta beleza nesta afirmação, não acha? Foi com isso em vista que Davi declarou que todos os nossos dias foram escritos no livro de Deus, sem que nenhum deles existisse (Salmos 139).
A vida não é um acidente de percurso. As coisas que nos sucedem não são aleatórias, frutos do acaso. Somos a declamação do poema de Deus.
Definitivamente, somos salvos pela beleza. A fé, que opera em conjunto com o amor, oferece-nos os óculos bifocais pelos quais enxergamos a vida em todo seu esplendor.
O pecado furou nossos olhos. Cegos, tornamo-nos incensíveis à beleza da criação, e por conseguinte, à beleza do Criador nela expressada. Na ânsia por beleza, auxiliados pela graça comum, os homens criaram as artes, na tentativa de enxergar alguma ordem no caos, e encontrar sentido para a vida.
Em cada traço esboçado numa tela, em cada nota musical de uma canção, em cada cena de uma peça teatral, em cada passo de dança, tentamos convencer-nos de que a vida é bela, e que vale a pena retratá-la em nossa arte.
A visão e a audição são os dois sentidos usados nesta busca por beleza. E quando a encontramos, sentimo-nos atraídos, ávidos por devorá-la. Às vezes cedemos às lágrimas, arrepiamos os pelos dos braços, sentimos o coração acelerar. A beleza nos soa como um irrecusável convite, a cheguemo-nos à sua fonte, e saciemo-nos por completo. A fonte de toda beleza é, coincidentemente, a fonte de todo o bem e de toda a verdade: DEUS, o supremo artista.
Davi, o habilidoso salmista, viu-se seduzido pela suprema beleza, e confessou:
“Uma coisa pedi ao Senhor, e a buscarei: que possa morar na casa do Senhor todos os dias da minha vida, para contemplar a formosura do Senhor, e inquirir no seu templo.”
Salmos 27:4
De todos os pedidos possíveis, Davi concentrou-se num único que verdadeiramente importava. Ele poderia ter pedido a derrota de seus inimigos, a prosperidade do seu reino, a estabilidade de sua coroa, mas em vez disso, ele pede para morar na casa do Senhor, lugar onde habita a beleza em sua plenitude. Um lugar de beleza encravado em um mundo repleto de feiúra. Um lugar de harmonia num mundo onde impera o caos.
Onde seria esta “casa do Senhor” em que poderíamos embriagar-nos da Sua formosura? Qual o seu endereço? Seria algumas das suntuosas catedrais cujos endereços aparecem nos rodapés dos programas evangélicos que abundam em nossa TV? Absolutamente, não. Mesmo porque, Deus não habita em templos feitos por mãos. Será, então, que o google nos forneceria tal endereço? Tente e depois me diga. Certamente você se desapontará.
Se quisermos uma pista de onde podemos habita a beleza plena, devemos buscá-la nas Escrituras.
“E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade.”
João 1:14
A Palavra Eterna, pela qual Deus fez todas as coisas, desceu de Sua glória e tornou-se carne e osso. A prosa divina fez-se poesia. Deus veio habitar conosco. Elegeu-nos como Seu novo endereço no Universo. Que os anjos atualizem os dados de sua agenda. Ele agora é um de nós, mora conosco, respira nosso ar, bebe nossa água, dorme nosso sono, e chega ao ponto de experimentar o auge da experiência humana: a morte. Pra isso, teve que esvaziar-Se das prerrogativas divinas, abdicar-Se do uso de Seus atributos, a fim de que Sua experiência humana fosse autêntica e não uma fraude. Apesar de vazio, apresentou-Se cheio de graça (beleza) e de verdade.
Cerca de 700 anos antes de Sua encarnação, Isaías anteviu Sua rejeição.
“Pois foi crescendo como renovo perante ele, e como raiz que sai duma terra seca; não tinha formosura nem beleza; e quando olhávamos para ele, nenhuma beleza víamos, para que o desejássemos. Era desprezado, e rejeitado dos homens; homem de dores, e experimentado nos sofrimentos; e, como um de quem os homens escondiam o rosto, era desprezado, e não fizemos dele caso algum. Verdadeiramente ele tomou sobre si as nossas enfermidades, e carregou com as nossas dores; e nós o reputávamos por aflito, ferido de Deus, e oprimido. Mas ele foi ferido por causa das nossas transgressões, e esmagado por causa das nossas iniqüidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados.”
Isaías 53:2-5
Mesmo cheio de “beleza e glória”(Is.4:2), fomos incapazes de enxergá-la N’Ele, e justamente por isso, não O desejamos. Nossa fome por beleza permanecia. Ele parecia incapaz de saciá-la. Nossos sentidos nos enganaram, pois o pecado os embotou. Rejeitamos a única esperança que nos restava. Desprezamos a última oferta feita pelos céus. Porém, Deus não desistiu de Sua obra. O poema composto na eternidade teria que ser declamado, nem que isso Lhe custasse a própria vida. E custou. Sua morte trouxe melodia ao Seu poema, tornando-o numa épica canção de amor.
Repare que em Apocalipse 4:11, os vinte quatro anciãos que cercavam o trono dizem “digno és, Senhor nosso Deus nosso, de receber a glória, a honra e o poder, pois tu criaste todas as coisas, e por tua vontade existem e foram criadas”. Já no capítulo seguinte, quando Cristo Se apresenta como Aquele que poderia romper os selos que impediam que o Livro de Deus fosse aberto, lemos que esses mesmos seres “cantavam um novo cântico, dizendo: Digno és de tomar o livro, e de abrir os seus selos, porque foste morto,e com o teu sangue compraste para Deus homens de toda tribo, e língua, e povo e nação” (Ap.5:9). Foi a Cruz que introduziu melodia ao poema. E há quem pense que a Cruz foi um improviso, uma espécie de plano B. A Criação é o poema. A Redenção é a canção. E o resultado final da obra é uma sinfonia. Duas peças musicais se fundem e formam o Grand Finalle. Foi isso que João viu e descreveu. Seres que tinham nas mãos as harpas de Deus, “cantavam o cântico de Moisés, servo de Deus e o cântico do Cordeiro, dizendo: Grandes e maravilhosas são as tuas obras, ó Senhor Deus, todo-poderoso. Justos e verdadeiros são os teus caminhos, ó Rei dos séculos. Quem não te temerá, ó Senhor, e não glorificará o teu nome? Pois só tu és santo. Todas as nações virão e se prostrarão diante de ti, pois os teus juízos são manifestos” (Ap.15:3-4).
Não há o que temer. A última estrofe da canção já foi composta. Todo joelho se dobrará. Toda consciência se renderá. Toda língua declarará seu amor ao Criador e Redentor de todas as coisas. A insinuante beleza revelada em Cristo prevalecerá. A injustiça, feiura e a mentira, serão vencidos pelo poder do bem, do belo e do verdadeiro. Preparado para o espetáculo?