segunda-feira, 19 de março de 2012

Fora da BELEZA não há SALVAÇÃO






Por Hermes C. Fernandes



“A beleza salvará o mundo.” Fiodor Dostoievski

“Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça...” Tom Jobim e Vinícius de Moraes


“Pela beleza sois salvos, mediante a fé, e isso não vem de vós, é dom de Deus.” Efésios 2:8



Soou estranho pra você, não? O correto não seria “pela graça sois salvos…”? Pois é, pois é, pois é… como diria a Ciquinha do Chaves. Permita-me explicar: A palavra grega traduzida por “graça” no Novo Testamento é charis, equivalente ao vocábulo hebraico chen, encontrado no Antigo Testamento. O conceito por trás desta palavra é riquíssimo, e geralmente tem sido definido como “favor imerecido”. Apesar de correta, esta definição não dá conta de encerrar todo o seu sentido. Do ponto de vista ético, graça é sinônimo de gratuidade pura. Deus resolveu tratar-nos da maneira como não merecemos, sem exigir absolutamente nada em troca. Em resposta à Sua iniciativa, fazemos da gratidão nossa motivação e base de nosso relacionamento com Ele. Toda a ética cristã jorra daí. Qualquer bem que façamos não tem a pretensão de tornar-nos merecedores da salvação, mas tão-somente de demonstrar nossa gratidão por tão grande salvação. Em outras palavras, nossas boas obras não são a causa de nossa salvação, e sim a sua consequência natural. Evito pecar, não pra ser salvo, mas porque sou salvo. A salvação não é fruto dos esforços humanos. Não é conquista que se deva creditar aos homens. Ela é obra inteiramente de Deus. Ele entra com 100%. Isso não é belo? Percebe a poesia por trás desta preciosa doutrina?

Devo confessar que o que mais me atrai no Cristianismo é a sua poesia. Tudo soa tão belo, tão romântico, tão sedutor. Prescindir da beleza é tornar-se num religioso petrificado, feito mármore fria, desprovida de qualquer sinal de vida. Em vez de estética, nossa espiritualidade é estática, contrariando assim a célebre definição de Gotthold Lessing de que "a graça é a beleza em movimento".  Não se pode engessá-la, cristalizá-la, reduzi-la a um conceito teológico frio. Infelizmente, a teologia ocidental tornou-se tão racional, que perdemos de vista a beleza por trás de seus enunciados doutrinários. O aspecto ético deve fazer-se acompanhar do fator estético, sob pena de perder seu poder atrativo. O que é bom, também é belo. O profético também é poético.

Logo depois de afirmar que somos salvos pela graça, Paulo prossegue em seu raciocínio alegando que a salvação não poderia ser pelas obras, a fim de que não nos gloriássemos nisso. Se a salvação dependesse de nossas obras, logo teríamos razão para nos vangloriar, e isso retroalimentaria nosso orgulho, pai de todos os pecados. Para que este ciclo fosse interrompido, a salvação teria que ser 0800. Em seguida, Paulo complementa: “Porque somos feitura sua, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus antes preparou para que andássemos nelas” (Efésios 2:10). Neste trecho, a palavra traduzida por “feitura” (que lembra feiúra, rs) é poiēma, que significa poema. Portanto, na mesma passagem em que Paulo diz que fomos salvos pela beleza da graça, ele também afirma que nossa vida é um poema composto por Deus. Cada estrofe deste poema já foi escrito muito antes de nascermos. Nossa existência terrena é apenas a declamação deste poema. Quanta beleza nesta afirmação, não acha? Foi com isso em vista que Davi declarou que todos os nossos dias foram escritos no livro de Deus, sem que nenhum deles existisse (Salmos 139).

A vida não é um acidente de percurso. As coisas que nos sucedem não são aleatórias, frutos do acaso. Somos a declamação do poema de Deus.

Definitivamente, somos salvos pela beleza. A fé, que opera em conjunto com o amor, oferece-nos os óculos bifocais pelos quais enxergamos a vida em todo seu esplendor.

O pecado furou nossos olhos. Cegos, tornamo-nos incensíveis à beleza da criação, e por conseguinte, à beleza do Criador nela expressada. Na ânsia por beleza, auxiliados pela graça comum, os homens criaram as artes, na tentativa de enxergar alguma ordem no caos, e encontrar sentido para a vida.

Em cada traço esboçado numa tela, em cada nota musical de uma canção, em cada cena de uma peça teatral, em cada passo de dança, tentamos convencer-nos de que a vida é bela, e que vale a pena retratá-la em nossa arte.

A visão e a audição são os dois sentidos usados nesta busca por beleza. E quando a encontramos, sentimo-nos atraídos, ávidos por devorá-la. Às vezes cedemos às lágrimas, arrepiamos os pelos dos braços, sentimos o coração acelerar. A beleza nos soa como um irrecusável convite, a cheguemo-nos à sua fonte, e saciemo-nos por completo. A fonte de toda beleza é, coincidentemente, a fonte de todo o bem e de toda a verdade: DEUS, o supremo artista.

Davi, o habilidoso salmista, viu-se seduzido pela suprema beleza, e confessou:

“Uma coisa pedi ao Senhor, e a buscarei: que possa morar na casa do Senhor todos os dias da minha vida, para contemplar a formosura do Senhor, e inquirir no seu templo.”

Salmos 27:4
De todos os pedidos possíveis, Davi concentrou-se num único que verdadeiramente importava. Ele poderia ter pedido a derrota de seus inimigos, a prosperidade do seu reino, a estabilidade de sua coroa, mas em vez disso, ele pede para morar na casa do Senhor, lugar onde habita a beleza em sua plenitude. Um lugar de beleza encravado em um mundo repleto de feiúra. Um lugar de harmonia num mundo onde impera o caos.
Onde seria esta “casa do Senhor” em que poderíamos embriagar-nos da Sua formosura? Qual o seu endereço? Seria algumas das suntuosas catedrais cujos endereços aparecem nos rodapés dos programas evangélicos que abundam em nossa TV? Absolutamente, não. Mesmo porque, Deus não habita em templos feitos por mãos. Será, então, que o google nos forneceria tal endereço? Tente e depois me diga. Certamente você se desapontará.

Se quisermos uma pista de onde podemos habita a beleza plena, devemos buscá-la nas Escrituras.

“E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade.”

João 1:14
A Palavra Eterna, pela qual Deus fez todas as coisas, desceu de Sua glória e tornou-se carne e osso. A prosa divina fez-se poesia. Deus veio habitar conosco. Elegeu-nos como Seu novo endereço no Universo. Que os anjos atualizem os dados de sua agenda. Ele agora é um de nós, mora conosco, respira nosso ar, bebe nossa água, dorme nosso sono, e chega ao ponto de experimentar o auge da experiência humana: a morte. Pra isso, teve que esvaziar-Se das prerrogativas divinas, abdicar-Se do uso de Seus atributos, a fim de que Sua experiência humana fosse autêntica e não uma fraude. Apesar de vazio, apresentou-Se cheio de graça (beleza) e de verdade.

Cerca de 700 anos antes de Sua encarnação, Isaías anteviu Sua rejeição.

“Pois foi crescendo como renovo perante ele, e como raiz que sai duma terra seca; não tinha formosura nem beleza; e quando olhávamos para ele, nenhuma beleza víamos, para que o desejássemos. Era desprezado, e rejeitado dos homens; homem de dores, e experimentado nos sofrimentos; e, como um de quem os homens escondiam o rosto, era desprezado, e não fizemos dele caso algum. Verdadeiramente ele tomou sobre si as nossas enfermidades, e carregou com as nossas dores; e nós o reputávamos por aflito, ferido de Deus, e oprimido. Mas ele foi ferido por causa das nossas transgressões, e esmagado por causa das nossas iniqüidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados.”

Isaías 53:2-5
Mesmo cheio de “beleza e glória”(Is.4:2), fomos incapazes de enxergá-la N’Ele, e justamente por isso, não O desejamos. Nossa fome por beleza permanecia. Ele parecia incapaz de saciá-la. Nossos sentidos nos enganaram, pois o pecado os embotou. Rejeitamos a única esperança que nos restava. Desprezamos a última oferta feita pelos céus. Porém, Deus não desistiu de Sua obra. O poema composto na eternidade teria que ser declamado, nem que isso Lhe custasse a própria vida. E custou. Sua morte trouxe melodia ao Seu poema, tornando-o numa épica canção de amor.

Repare que em Apocalipse 4:11, os vinte quatro anciãos que cercavam o trono dizem “digno és, Senhor nosso Deus nosso, de receber a glória, a honra e o poder, pois tu criaste todas as coisas, e por tua vontade existem e foram criadas”. Já no capítulo seguinte, quando Cristo Se apresenta como Aquele que poderia romper os selos que impediam que o Livro de Deus fosse aberto, lemos que esses mesmos seres “cantavam um novo cântico, dizendo: Digno és de tomar o livro, e de abrir os seus selos, porque foste morto,e com o teu sangue compraste para Deus homens de toda tribo, e língua, e povo e nação” (Ap.5:9). Foi a Cruz que introduziu melodia ao poema. E há quem pense que a Cruz foi um improviso, uma espécie de plano B. A Criação é o poema. A Redenção é a canção. E o resultado final da obra é uma sinfonia. Duas peças musicais se fundem e formam o Grand Finalle. Foi isso que João viu e descreveu. Seres que tinham nas mãos as harpas de Deus, “cantavam o cântico de Moisés, servo de Deus e o cântico do Cordeiro, dizendo: Grandes e maravilhosas são as tuas obras, ó Senhor Deus, todo-poderoso. Justos e verdadeiros são os teus caminhos, ó Rei dos séculos. Quem não te temerá, ó Senhor, e não glorificará o teu nome? Pois só tu és santo. Todas as nações virão e se prostrarão diante de ti, pois os teus juízos são manifestos” (Ap.15:3-4).

Não há o que temer. A última estrofe da canção já foi composta. Todo joelho se dobrará. Toda consciência se renderá. Toda língua declarará seu amor ao Criador e Redentor de todas as coisas. A insinuante beleza revelada em Cristo prevalecerá. A injustiça, feiura e a mentira, serão vencidos pelo poder do bem, do belo e do verdadeiro. Preparado para o espetáculo?


sexta-feira, 2 de março de 2012

A TAXA !


A Taxa Camarae do Papa Leão X (1513-1521)

Um dos pontos culminantes da corrupção humana

A Taxa Camarae é um tarifário promulgado em 1517, pelo papa Leão X (1513-1521) destinado a vender indulgências, ou seja, o perdão dos pecados, a todos quantos pudessem pagar umas boas libras ao pontífice.
Como veremos na transcrição que se segue, não havia delito, por mais horrível que fosse, que não pudesse ser perdoado a troco de dinheiro.
Leão X declarou aberto o céu para todos aqueles, fossem clérigos ou leigos, que tivessem violado crianças e adultos, assassinado uma ou várias pessoas, ou abortado, desde que se manifestassem generosos com os cofres papais.

“ 1. O eclesiástico que cometa o pecado da carne, seja com freiras, seja com primas, sobrinhas ou afilhadas suas, seja, por fim, com outra mulher qualquer, será absolvido, mediante o pagamento de 67 libras e 12 soldos.

2. Se o eclesiástico, além do pecado de fornicação, quiser ser absolvido do pecado contra a natureza ou de bestialidade, deve pagar 219 libras, 15 soldos. Mas se tiver apenas cometido pecado contra a natureza com meninos ou com animais e não com mulheres, somente pagará 131 libras e 15 soldos.

3. O sacerdote que desflorar uma virgem, pagará 2 libras e 8 soldos.

4. A religiosa que quiser alcançar a dignidade de abadessa depois de se ter entregue a um ou mais homens simultânea ou sucessivamente, quer dentro, quer fora do seu convento, pagará 131 libras e 15 soldos.

5. Os sacerdotes que quiserem viver maritalmente com parentes, pagarão 76 libras e 1 soldo.

6. Para todos os pecados de luxúria cometidos por um leigo, a absolvição custará 27 libras e 1 soldo; no caso de incesto, acrescentar-se-ão em consciência 4 libras.

7. A mulher adúltera que queira ser absolvida para estar livre de todo e qualquer processo e obter uma ampla dispensa para prosseguir as suas relações ilícitas, pagará ao Papa 87 libras e 3 soldos. Em idêntica situação, o marido pagará a mesma soma; se tiverem cometido incesto com os seus filhos acrescentarão em consciência 6 libras.

8. A absolvição e a certeza de não serem perseguidos por crimes de rapina, roubo ou incêndio, custará aos culpados 131 libras e 7 soldos.

9. A absolvição de um simples assassínio cometido na pessoa de um leigo é fixada em 15 libras, 4 soldos e 3 dinheiros.

10. Se o assassino tiver morto a dois ou mais homens no mesmo dia, pagará como se tivesse apenas assassinado um.

11. O marido que tiver dado maus tratos à sua mulher, pagará aos cofres da chancelaria 3 libras e 4 soldos; se a tiver morto, pagará 17 libras, 15 soldos; se o tiver feito com a intenção de casar com outra, pagará um suplemento de 32 libras e 9 soldos. Se o marido tiver tido ajuda para cometer o crime, cada um dos seus ajudantes será absolvido mediante o pagamento de 2 libras.

12. Quem afogar o seu próprio filho pagará 17 libras e 15 soldos [ou seja, mais duas libras do que por matar um desconhecido (observação do autor do livro)]; caso matem o próprio filho, por mútuo consentimento, o pai e a mãe pagarão 27 libras e 1 soldo pela absolvição.

13. A mulher que destruir o filho que traz nas entranhas, assim como o pai que tiver contribuído para a perpetração do crime, pagarão cada um 17 libras e 15 soldos. Quem facilitar o aborto de uma criatura que não seja seu filho pagará menos 1 libra.

14. Pelo assassinato de um irmão, de uma irmã, de uma mãe ou de um pai, pagar-se-á 17 libras e 5 soldos.

15. Quem matar um bispo ou um prelado de hierarquia superior terá de pagar 131 libras, 14 soldos e 6 dinheiros.

16. O assassino que tiver morto mais de um sacerdote, sem ser de uma só vez, pagará 137 libras e 6 soldos pelo primeiro, e metade pelos restantes.

17. O bispo ou abade que cometa homicídio por emboscada, por acidente ou por necessidade, terá de pagar, para obter a absolvição, 179 libras e 14 soldos.

18. Quem quiser comprar antecipadamente a absolvição, por todo e qualquer homicídio acidental que venha a cometer no futuro, terá de pagar 168 libras e 15 soldos.

19. O herege que se converta pagará pela sua absolvição 269 libras. O filho de um herege queimado, enforcado ou de qualquer outro modo justiçado, só poderá reabilitar-se mediante o pagamento de 218 libras, 16 soldos e 9 dinheiros.

20. O eclesiástico que, não podendo saldar as suas dívidas, não quiser ver-se processado pelos seus credores, entregará ao pontífice 17 libras, 8 soldos e 6 dinheiros, e a dívida ser-lhe-á perdoada.

21. A licença para instalar pontos de venda de vários géneros, sob o pórtico das igrejas, será concedida mediante o pagamento de 45 libras, 19 soldos e 3 dinheiros.

22. O delito de contrabando e as fraudes relativas aos direitos do príncipe contarão 87 libras e 3 dinheiros.

23. A cidade que quiser obter para os seus habitantes ou para os seus sacerdotes, frades ou monjas autorização de comer carne e lacticínios nas épocas em que está vedado fazê-lo, pagará 781 libras e 10 soldos.

24. O convento que quiser mudar de regra e viver com menos abstinência do que a que estava prescrita, pagará 146 libras e 5 soldos.

25. O frade que para sua maior conveniência, ou gosto, quiser passar a vida numa ermida com uma mulher, entregará ao tesouro pontifício 45 libras e 19 soldos.

26. O apóstata vagabundo que quiser viver sem travas pagará o mesmo montante pela absolvição.

27. O mesmo montante terá de pagar o religioso, regular ou secular, que pretenda viajar vestido de leigo.

28. O filho bastardo de um prior que queira herdar a cura de seu pai, terá de pagar 27 libras e 1 soldo.

29. O bastardo que pretenda receber ordens sacras e usufruir de benefícios pagará 15 libras, 18 soldos e 6 dinheiros.

30. O filho de pais incógnitos que pretenda entrar nas ordens pagará ao tesouro pontifício 27 libras e 1 soldo.

31. Os leigos com defeitos físicos ou disformes, que pretendam receber ordens sacras e usufruir de benefícios pagarão à chancelaria apostólica 58 libras e 2 soldos.

32. Igual soma pagará o cego da vista direita, mas o cego da vista esquerda pagará ao Papa 10 libras e 7 soldos. Os vesgos pagarão 45 libras e 3 soldos.

33. Os eunucos que quiserem entrar nas ordens, pagarão a quantia de 310 libras e 15 soldos.

34. Quem, por simonia, (compra ou venda ilícita de benefícios eclesiásticos) quiser adquirir um ou mais benefícios deve dirigir-se aos tesoureiros do Papa que lhos venderão por um preço moderado.

35. Quem, por ter quebrado um juramento, quiser evitar qualquer perseguição e ver-se livre de qualquer marca de infâmia, pagará ao Papa 131 libras e15 soldos. Pagará ainda por cada um dos seus fiadores a quantia de 3 libras.”


No entanto, para a historiografia católica, o Papa Leão X, autor de um exemplo de corrupção tão grande como o que acabamos de ler, passa por ser o protagonista da história do pontificado mais brilhante e talvez o mais perigoso da história da Igreja.